Aos 103 anos, mulher começa a estudar no interior da Bahia
Independente, lúcida e ainda dando tragos no seu cachimbo, Dona Beduína já aprendeu a escrever o primeiro nome
Foto: Thiago Guimarães/iG Ampliar
Maria Joviniana e a bisneta na sala de aula em São Sebastião do Passé, no interior da Bahia: "Nunca me dediquei a estudar, e não tinha escola como tem hoje".
Dona Beduína, como é conhecida, atendeu ao chamado de uma educadora de 33 anos que, em fevereiro deste ano, passou por sua rua recrutando alunos para um programa de alfabetização do governo estadual. “É ruim ver a palavra de Deus e não saber explicar, ver uma receita médica, não saber que dia é. Eu disse: não estou fazendo nada, vamos ver se aprendo alguma coisa”, diz a centenária.
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Com lucidez e energia notáveis, dona Beduína conta que teve poucas possibilidades de estudar - chegou a cursar o extinto Mobral, programa de alfabetização do regime militar, mas a experiência durou pouco. “Nunca me dediquei a estudar, e não tinha escola como tem hoje.”É ruim ver a palavra de Deus e não saber explicar, ver uma receita médica, não saber que dia é. Eu disse: não estou fazendo nada, vamos ver se aprendo alguma coisa"
A trajetória da baiana do Recôncavo acompanhou a de São Sebastião do Passé, embora tenha nascido antes da criação oficial do município, em 1926. Viveu de fazenda em fazenda com o pai, que era caseiro, ao sabor dos resultados nas roças de mandioca, principal cultivo local. A cultura declinou diante da pecuária, o pai foi ser carroceiro em Salvador e a menina ficou com a avó, parteira, em Lameirão do Passé, distrito a 18 km da sede da cidade.
Dos tempos com a avó, Joviniana conta das mangabas - fruto cultivado há séculos pelos povos do sertão brasileiro - que catavam e reuniam em latas para vender. Havia também o coco e o óleo da piaçava, espécie nativa baiana, e a água que a avó buscava longe para as casas mais abastadas, naqueles tempos sem encanamento. “Botava água para ganhar um litro de farinha, um pedaço de carne. Disso a gente ia vivendo.”
A memória também evoca fatos históricos, como a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e os tios que se jogavam em rios para fugir dos “carros forrados com lona verde” do recrutamento “porque não tinha esse negócio de ir para a guerra”. Canta “Salve a Princesa Isabel”, samba de 1948 de Paquito e Luis Soberano, e se lembra do jornal que estampava as cabeças cortadas do bando de Virgulino Ferreira da Silva, o cangaceiro Lampião, morto em 1938. “Ele era uma boa pessoa”, diz.
Dona Joviniana conta que só desmaiou quando filho virou policial
Aulas em família
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Joviniana é um dos 351 alunos em São Sebastião do Passé do Topa (Todos pela Alfabetização), programa do governo Jaques Wagner (PT). A iniciativa reflete velhos problemas da educação do País – os professores do programa, todos voluntários, ainda não receberam em 2011 a ajuda de custo mensal de R$ 250. A Secretaria da Educação da Bahia informou que os repasses estão atrasados porque a prefeitura de São Sebastião do Passé não confirmou dados de presença dos docentes. A prefeitura disse estar providenciando as informações.Desisti da irmandade porque não dorme com marido, não bebe cachaça, não fuma, não come carne"
Para além das dificuldades, o exemplo da estudante centenária animou Maria da Silva dos Santos, 59 anos, que também passou a frequentar as aulas e caminha de mãos dadas com a amiga até a escola todos os dias. Outra colega é Maria Cecília dos Santos, 58 anos, uma das sete filhas de dona Beduína. Ao todo, a matriarca teve quatro maridos (o último morreu há cerca de dez anos) e 17 filhos, dos quais 14 estão vivos, espalhados por cidades do entorno de Salvador e em São Paulo. São 92 netos, e a família já perdeu a conta dos outros descendentes.
Foto: Thiago Guimarães/iG Ampliar
Bahia é o Estado com mais brasileiros centenários: são 3.525 ao todo, segundo o censo 2010 do IBGE. Entre eles, dona Beduína
Um comentário:
Que belo exemplo!!!!
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