A CADERNETA VIRTUAL
Por volta de 1970, o Brasil vivia
sob as regras naturais da honestidade que imperava como regra geral de
convivência entre as pessoas ditas civilizadas. Os armazéns como o do turco
Aziz, anotavam as vendas em uma “caderneta” que o freguês levava pra casa, para
que no final do mês a conta fosse paga, e o freguês pontual fazia jus a uma
lata de goiabada ou marmelada como reconhecimento da sua pontualidade. As
pessoas pagavam por uma questão de honra e do medo de que a vizinhança ficasse
sabendo de possível impontualidade, o que era considerado imoral. As lojas que
vendiam em prestações, como a Ducal, Mesbla e outras tinham um cadastro de
fregueses que eram considerados bons pagadores, e quando surgia um novo freguês,
ele precisava ser apresentado e avalizado por um cliente pontual habitual. Sem
apresentação e garantia do avalista não havia compra, e se o novo freguês não
pagasse o avalista horava a garantia, sem necessidade de intervenção da
justiça, SPC ou SERASA. Ter o nome limpo era questão de honra e as pessoas
levavam isso a sério como se o nome fosse o seu maior patrimônio.
Casamento, só com pessoas
referenciadas, de família respeitada e com o comprometimento de toda a família
no relacionamento que se não tivesse apoio e aceitação das famílias não havia
casamento.
O trabalhador procurava emprego
para garantir a sobrevivência, e quem não tinha trabalho certo era tido por
malandro ou vagabundo diante da sociedade que o estigmatizava. A carteira de
trabalho andava no bolso para provar ocupação lícita ou a polícia poderia
conduzir o indivíduo abordado a uma delegacia de polícia para fins de averiguação.
Nas grandes cidades, o principal
meio de transporte era o bonde, uma espécie de veículo aberto nas laterais com
passageiros subindo e descendo sem controle, sem roletas e com um cobrador que
circulava pelas laterais recebendo e dando troco a quem voluntariamente lhe
dava o dinheiro. O cobrador dobrava as notas ao comprido e as colocava entre os
dedos exibindo aquela fartura sem qualquer preocupação. Quem quisesse viajar
sem pagar conseguia, mas isso não era comum porque era “feio” ser esperto. O
cobrador prestava contas corretamente ao seu patrão, sem controles, sem câmeras
de vigilância e sem roletas.
Se tudo isso era certo ou errado,
não é o que se vai discutir aqui, mas o fato é que a nossa sociedade deteriorou-se
de tal forma que o que se chama de evolução tecnológica quer nos mostrar que
vigiar os outros é fundamental alimentando a ideia de que somos todos
desonestos até que se prove o contrário, exatamente o inverso dos tempos
passados onde a premissa era a de que todos eram honestos até prova em
contrário.
Qual o maior problema que isso
nos gerou?
O custo de vida, que é o preço
que se tem que pagar para viver. Viver ficou tão caro que não há salário que
seja suficiente para se bancar a tal vida moderna. Os patrões precisam
controlar seus empregados, o patrimônio precisa ser assegurado, os bancos
oferecem o talão de cheques sem qualquer preocupação com o calote porque os
bons pagam pelos maus pagadores, e assim foi tudo ficando caro e as pessoas não
conseguem mais confiar umas nas outras. A última novidade é a liberação do
Fundo de Garantia das contas inativas que o governo resolveu autorizar em favor
de trabalhadores que haviam sido demitidos ou que se demitiram e não puderam
resgatar essas verbas à época da rescisão contratual. Os valores nem são tão
altos, mas a corrida é grande e as pessoas ao serem entrevistadas pela imprensa
nas filas do resgate, dizem que vão usar o dinheiro para pagar dívidas. Isso
significa que grande parte das pessoas estão endividadas ao invés de terem
alguma poupança como ocorria naquela época dos anos 70.
Ai vem o governo dizer que está
fazendo essas liberações para incentivar o consumismo considerado necessário
para o desenvolvimento econômico do país. A regra seria produzir-se no país
somente o que o consumidor pode comprar e não incentivar o endividamento que
acabará construindo um falso poder de compra e um mercado mentiroso que gera excesso
de consumo e incapacidade de pagamento. A TV induz o endividamento e o governo
prega a necessidade de se comprar mais.
A pergunta é sempre oportuna:
Será que evoluímos ou será que apenas crescemos em volume de negócios e coisas?
A caderneta de anotações das
compras seria muito bem vinda de volta se acompanhada de uma onda de
honestidade e a utilização da tecnologia deveria servir somente para dar à
caderneta um ar de modernidade virtual. A moral social, a caderneta virtual, e
nós convivendo em harmonia sem espertos nem inocentes controlando e pagando
pontualmente as contas pelo celular.
João Lúcio Teixeira
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