domingo, 11 de junho de 2017

A CADERNETA VIRTUAL

A CADERNETA VIRTUAL
Por volta de 1970, o Brasil vivia sob as regras naturais da honestidade que imperava como regra geral de convivência entre as pessoas ditas civilizadas. Os armazéns como o do turco Aziz, anotavam as vendas em uma “caderneta” que o freguês levava pra casa, para que no final do mês a conta fosse paga, e o freguês pontual fazia jus a uma lata de goiabada ou marmelada como reconhecimento da sua pontualidade. As pessoas pagavam por uma questão de honra e do medo de que a vizinhança ficasse sabendo de possível impontualidade, o que era considerado imoral. As lojas que vendiam em prestações, como a Ducal, Mesbla e outras tinham um cadastro de fregueses que eram considerados bons pagadores, e quando surgia um novo freguês, ele precisava ser apresentado e avalizado por um cliente pontual habitual. Sem apresentação e garantia do avalista não havia compra, e se o novo freguês não pagasse o avalista horava a garantia, sem necessidade de intervenção da justiça, SPC ou SERASA. Ter o nome limpo era questão de honra e as pessoas levavam isso a sério como se o nome fosse o seu maior patrimônio.
Casamento, só com pessoas referenciadas, de família respeitada e com o comprometimento de toda a família no relacionamento que se não tivesse apoio e aceitação das famílias não havia casamento.
O trabalhador procurava emprego para garantir a sobrevivência, e quem não tinha trabalho certo era tido por malandro ou vagabundo diante da sociedade que o estigmatizava. A carteira de trabalho andava no bolso para provar ocupação lícita ou a polícia poderia conduzir o indivíduo abordado a uma delegacia de polícia para fins de averiguação.
Nas grandes cidades, o principal meio de transporte era o bonde, uma espécie de veículo aberto nas laterais com passageiros subindo e descendo sem controle, sem roletas e com um cobrador que circulava pelas laterais recebendo e dando troco a quem voluntariamente lhe dava o dinheiro. O cobrador dobrava as notas ao comprido e as colocava entre os dedos exibindo aquela fartura sem qualquer preocupação. Quem quisesse viajar sem pagar conseguia, mas isso não era comum porque era “feio” ser esperto. O cobrador prestava contas corretamente ao seu patrão, sem controles, sem câmeras de vigilância e sem roletas.
Se tudo isso era certo ou errado, não é o que se vai discutir aqui, mas o fato é que a nossa sociedade deteriorou-se de tal forma que o que se chama de evolução tecnológica quer nos mostrar que vigiar os outros é fundamental alimentando a ideia de que somos todos desonestos até que se prove o contrário, exatamente o inverso dos tempos passados onde a premissa era a de que todos eram honestos até prova em contrário.
Qual o maior problema que isso nos gerou?
O custo de vida, que é o preço que se tem que pagar para viver. Viver ficou tão caro que não há salário que seja suficiente para se bancar a tal vida moderna. Os patrões precisam controlar seus empregados, o patrimônio precisa ser assegurado, os bancos oferecem o talão de cheques sem qualquer preocupação com o calote porque os bons pagam pelos maus pagadores, e assim foi tudo ficando caro e as pessoas não conseguem mais confiar umas nas outras. A última novidade é a liberação do Fundo de Garantia das contas inativas que o governo resolveu autorizar em favor de trabalhadores que haviam sido demitidos ou que se demitiram e não puderam resgatar essas verbas à época da rescisão contratual. Os valores nem são tão altos, mas a corrida é grande e as pessoas ao serem entrevistadas pela imprensa nas filas do resgate, dizem que vão usar o dinheiro para pagar dívidas. Isso significa que grande parte das pessoas estão endividadas ao invés de terem alguma poupança como ocorria naquela época dos anos 70.
Ai vem o governo dizer que está fazendo essas liberações para incentivar o consumismo considerado necessário para o desenvolvimento econômico do país. A regra seria produzir-se no país somente o que o consumidor pode comprar e não incentivar o endividamento que acabará construindo um falso poder de compra e um mercado mentiroso que gera excesso de consumo e incapacidade de pagamento. A TV induz o endividamento e o governo prega a necessidade de se comprar mais.
A pergunta é sempre oportuna: Será que evoluímos ou será que apenas crescemos em volume de negócios e coisas?
A caderneta de anotações das compras seria muito bem vinda de volta se acompanhada de uma onda de honestidade e a utilização da tecnologia deveria servir somente para dar à caderneta um ar de modernidade virtual. A moral social, a caderneta virtual, e nós convivendo em harmonia sem espertos nem inocentes controlando e pagando pontualmente as contas pelo celular.
João Lúcio Teixeira



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